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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Do órgão à cuíca

Jacinto Flecha


Numa boa gravação em vinil (que os saudosistas chamam carinhosamente de bolachão), o famoso organista Power Biggs conta a história do órgão, que começou com a flauta primitiva. Numerosos aperfeiçoamentos, ao longo dos séculos, o tornaram o instrumento musical mais completo, mais variado, mais apto a elevar as pessoas, aproximando-as de Deus. Power Biggs acompanha sua narrativa com execuções próprias em órgãos famosos, cuja estrutura chega a milhares de tubos. A certa altura ele afirma: “O som do órgão numa catedral medieval é irresistível”.

Cada tubo acrescentado a um novo órgão significava aperfeiçoamento da variedade, pureza e qualidade do som. Ao mesmo tempo se aperfeiçoavam igrejas, castelos, residências familiares, roupas, o convívio humano. A procura da perfeição impregnou toda a sociedade medieval. Tendia-se à perfeição em tudo, enquanto as pessoas também se aperfeiçoavam sob o manto protetor da Igreja Católica. Ela as atraía sempre mais, inspirando-as e orientando-as no caminho da perfeição.

Se você já viu alguma dança ritual de tribos africanas, ao ritmo monótono de tambores e uivos primitivos, pode facilmente imaginar quanto esforço, quanto sacrifício, quanta oração o mundo primitivo exigiu dos missionários católicos até culminar no ofício solene de uma catedral, ao som do órgão, do canto gregoriano e de corais majestosos.

Sugiro, caro leitor, um teste simples. Ouça duas peças muito conhecidas e fáceis de encontrar – o minueto de Boccherini e o adágio de Albinoni. Melodiosas, suaves, tranquilizantes, cada uma ao seu modo transporta o ouvinte a ambientes requintados. O minueto, dança das cortes antigas, sugere um convívio ameno e gracioso, e Albinoni cria uma atmosfera de paz e meditação. Ambos põem de lado os instintos animalescos e as baixezas humanas, elevam as almas enquanto lhes proporcionam prazer estético. Passe agora rapidamente dessa degustação musical para a gritaria bestial de qualquer conjunto de rock.

Depois de submeter-se a essa queda vertiginosa, eu lhe pergunto: É possível alguém se elevar, sentir-se convidado ao sublime, ao cair das duas primeiras para a última? Para algum leitor disposto a admirar o estilo clássico, mas engolir também o outro, recomendo examinar cuidadosamente seus gostos musicais, que precisam ser corrigidos com urgência.

Alguém poderia alegar falta de paciência e de formação musical para ouvir os clássicos. Vou confidenciar-lhe que eu também não tenho formação musical, mas ouço os clássicos para me aperfeiçoar, inclusive para afiar minhas flechas. E lembro-lhe também que os variadíssimos ritmos de dança usados nas cortes eram adaptados pela população simples para as suas danças alegres, joviais, por vezes ruidosas. A própria quadrilha pode ser vista como uma versão popular do minueto. Em toda a Europa ainda se cultivam essas danças tradicionais, com características próprias em cada país. Há belos vídeos delas no Youtube (Veja algumas em Igor Moiseyev russian dance).

Deixei minhas flechas na aljava, energizando-se enquanto o cartão de crédito globalizado comanda o festival anual de boas intenções. Nada impede, no entanto, que eu manifeste minha profunda decepção com o quase total emudecimento dos órgãos, e com sua lamentável substituição por instrumentos musicais populares, toleráveis em pagodinhos mas abomináveis em cerimônias religiosas. Compare o som majestoso do órgão com o coaxar de sapo que uma cuíca produz, e entenderá a decadência introduzida com instrumentos assim.

O minguamento de católicos em todo o mundo está sendo simultâneo com o emudecimento dos órgãos. Não apenas dele, mas de todo o majestoso conjunto atacado pela autodemolição, que teve início no Concílio e foi sistematizada sob o pontificado de Paulo VI. Essa consequência era previsível, foi prevista, e hoje é pranteada por autoridades eclesiásticas. Inexplicavelmente, no entanto, elas insistem na autodemolição.

Muitos séculos de dedicação para subir da flauta ao órgão, apenas meio século de autodemolição para degringolar do órgão à cuíca. Não consigo imaginar progresso espiritual em missa ao som de cuíca, nem que um sacerdote celebre uma missa dessas com a consciência tranquila.

Esta coluna semanal pode ser reproduzida e divulgada livremente

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